Eu precisava estourar meus miolos. Eu precisava de um choque
elétrico. Eu precisava de qualquer coisa que me libertasse a consciência. Que
me libertasse, também, dela. Eu precisava falar menos, e encaixar-me em algum
canto... Fosse uma caixa, uma gaveta ou um cofre.
Eu precisava desaparecer. Era necessário sentir-se integrado
e querido, mas não sem antes, aquietar-me e sumir com qualquer vestígio de uma
existência anterior. Eu queria mesmo era esfuziar, e se possível, renascer.
Mas para isso, era preciso que nem cinzas restassem. Renascer reformulado era
plausível. Ressurgir, não.
Eu precisava escapar do peso de todas as decisões. Das que
foram tomadas, das que foram delegadas e das que foram simplesmente ignoradas. Precisava
escapar das impossibilidades, das limitações. Precisava desvencilhar-me de uma
visão impregnada de cinza.
Eu tinha concluído que a vida, daqui por diante, seria a
tentativa de estabelecer um equilíbrio fino entre solidão e companhia. Porém em
meio a tanto cansaço, a tanta decepção, a tanto desconsolo e a tanto “não é
possível”, era cada vez mais difícil manter a vontade. Manter a vontade pra
que? Por quê? Pra quem?
Daqui por diante, derrota e vitória, alegria e tristeza,
sorte e azar, seriam apenas coadjuvantes. O protagonismo estaria reservado à
amargura, ao desajuste e ao vazio. Os contrastes seriam meros planos de fundo.
E a mim, restaria prosseguir atormentado pelas vozes que há
muito me acompanham. Pela sombra do que fui, pela projeção do que serei e,
acima de tudo, pelas idealizações de uma renovação impossível e por um final
que embora pareça cada vez mais necessário, não encontra a coragem necessária
para se fazer.
A sensação é de que falta algo. Não faço ideia do que seja,
mas sei que dentre todas as faltas, esta se destaca. É a pródiga, é a peça
final.
Como a parte única e ausente de um enorme quebra-cabeça, ela
deixa uma lacuna impreenchível, que se ocupada, talvez, explique tudo. Ou nada.
Não está contida nos desamores, na incerteza do sim ou do
não, no antes, no agora ou no depois, nas decepções com o ser humano, com a
vida ou com a morte. Ausente até nas ausências, ela é a falta das faltas, que
não falha em se fazer sentida, mas, é bem provável que jamais tenha sido precisada.
Eu sei que ela está lá. Ela faz questão de ser notada, porém, nunca se deixa
ver.
Todo dia, minha mente realiza uma busca frenética,
procurando em todos os recantos imagináveis, a resposta desse íntimo enigma
antigo.
Refaz os passos, retorna algumas horas, relembra o dia,
revisa as imagens, pesca cada vez mais fundo, em águas cada vez mais rasas.
Pulando de falha em falha, de falta em falta, da lembrança
ao esquecimento, vou avançando e regredindo, em intuito e no tempo, espreitando
algo que sempre está um passo à frente. Ou atrás.
Correndo em círculos, numa ação com ares cada vez mais paranoicos e estéreis, eu vou. Vou meio cego, meio cheio de mim. Eu vou, sem
ir.
Essa é a minha baleia branca. A estrela que devo apanhar, do
céu. A caça de uma vida. E alternando entre estratégia e instinto, entre
suposições e ataques, permito que a caça me acosse e que assuma, ela, o papel de caçador.
E dia após dia, no ápice de um novo episódio deste conto
ordinário, emerge do breu, o sono. E me acorda da realidade, para me por a
dormir.
Acabei de completar uma semana em meu novo trabalho. Depois
que a minha rotina sofreu esta mudança, eu tenho tido pouco tempo livre e esta
é uma situação muito pouco familiar. Sempre estive acostumado a ter muito
tempo. Viver pouco e aos poucos.
Não acho que possa reclamar do meu ofício. Trabalho perto de
casa, com algo que gosto. A atividade
certamente não tem o prestígio e a ludicidade de tantas outras, mas é real, é
tangível, é rentável, não acho que eu possa esperar muito mais.
Mas à noite... à noite, eu tenho que viver. Eu, que estava
acostumado a espalhar meus afazeres em pontos esparsos do meu tempo, vejo-me
obrigado a condicionar tudo o que tenho de mais importante a pensar(ou não
pensar) e(ou) a fazer, em um curto período. É a vida comprimida. É a vida em
comprimidos para dormir.
Essa ideia de reunir tudo num curto espaço, é meio
assustadora para mim. Quando me dou conta, é tarde, passei muito tempo
ponderando, ou simplesmente o deixei passar. É hora de dormir. É hora de
repousar, juntamente com todos os desejos antigos e contidos, com todas as
neuroses, com todas as insatisfações, com todas as falhas, ausências... com a
atenção quase que inteiramente voltada ao novo cargo, com o temor de que logo
ele se afaste. Eu e todas as minhas usuais companhias, vamos repousar , para no
dia seguinte, após 6 ou 7 horas de sono, acordarmos, preguiçosos e caminharmos
emparelhados, numa recém adquirida jornada.
Meus desgostos são altamente fiéis. Não me abandonam nem mesmo durante a labuta.
A solidão é a mesma, as decepções que eu continuo tentando
atenuar com indiferença, também. Eu já não tento falar e ninguém demonstra
interesse em fazê-lo. Talvez seja melhor desta forma. Solidão não se vive a
dois.
Entre as longas horas de obrigação, que se alastram pelos
meus dias, sem serem mais inúteis que as longas horas de ócio as quais eu me
reservava, vou me dando conta do real motivador desta inquietação que me impede
de aproveitar efetivamente as poucas horas livres que tenho.
A vida é veneno para mim. Para todos, se analisarmos bem a
situação. Há quem não concorde, mas, é o que penso. E não sinta pena, caro
leitor. Não sinta coisa alguma, eu me acostumei com a situação. Mesmo com este
corpo e com esta mente fodidos, eu gosto de estar vivo. Talvez eu seja uma
espécie de ermitão moderno, trancado no meu quarto, fugindo de meus
semelhantes... mas, eles são tão diferentes, tão superiores... que diabos eu
faria no meio deles?
Não é uma forma convencional de viver, mas é a minha
maneira. É a forma que encontrei para
não pirar. Para alguns, sobreviver, é a saída. Mais do que isso, é martírio, é
auto-flagelo.
Ciente do veneno que me é administrado em doses diárias,
contido em cada segundo experimentado, percebi ter duas opções: partir de pronto,
ou tomar doses cotidianas do meu algoz. Optei(obviamente) pela segunda. E cada
pensamento, cada gesto, cada decisão, é um pouco de veneno que eu ingiro.
Talvez por isso, eu estivesse acostumado a fazer tão pouco. Administrava-me doses minimas e espaçadas, o suficiente para um equilíbrio saudável entre o viver e a inevitável abrasão mental e cronológica.
Mas agora, no novo contexto, com tão pouca disponibilidade,
eu faço tudo em pouco tempo. Tudo ao mesmo tempo. Me injeto doses cavalares, em
todo período de folga.
Me dei conta do que me assusta. Do que me impede de como os
outros, gerenciar meu tempo de forma saudável. Me dei conta da razão de estar
ainda mais confuso.
É toda essa vida
concentrada, injetada na veia. É viver muito, em pouco tempo. É viver demais
esse desgaste, esse desgosto, essa peçonha.